quinta-feira, 20 de maio de 2010

Os Gênios Preguiçosos

Certa vez, eu falei num tom de brincadeira para minha namorada: "os gênios são preguiçosos por natureza". Desde então, acredito que, através dela, o mito tenha se concretizado e servido na cabeça (e na consciência) de muitos, por ser feito de um tecido muito flexível e confortável. Isso se comprovou quando ouvi um amigo meu dizendo de si mesmo: "eu sou tipo um gênio preguiçoso, sabe?". Outro concordou, e também viu certa identificação com o mito.

Mas eu pergunto a vocês, possíveis leitores, se vocês também não se identificam com o mito do "gênio preguiçoso" e, se não enjoarem da leitura, darei uma breve descrição sobre ele:

"O gênio preguiçoso acredita e se comprova como uma pessoa que enxerga o que outras pessoas, comuns, não seriam capaz de enxergar. O gênio preguiçoso é também uma pessoa largada, que possui seus próprios horários, que não dá bola para rotinas e nem para esforços 'fora de sua hora'. Gosta de fazer tudo ao seu modo, é um solitário, costuma ser teimoso para com suas idéias e um tanto intolerante. O gênio preguiçoso também acha que é dispensável o estudo para a manutenção do seu conhecimento. Sua inteligência é algo que 'vem de dentro', freqüentemente dispensando o trabalho intelectual ou o esforço considerado 'desnecessário'. O gênio preguiçoso confirmou para si que possui talentos raros, algum tipo de talento raro que o coloca à frente dos demais. Ele se sente uma pessoa muito diferente e incomum das demais..."

Eu acho tudo isso uma grande bobagem, francamente. Mais do que uma grande besteira, acho uma total falta de humildade e um excesso alarmante de orgulho.

Esse mito do Gênio Preguiçoso é um... é como um escudo, atrás do qual a pessoa se esconde. Enquanto estiver atrás desse escudo, todos os seus fracassos, fracassos NORMAIS atribuído a pessoas NORMAIS, terão como justificativa uma "preguiça" que, em outras palavras, significa que a pessoa simplesmente não quis não fracassar. O "gênio" se convence de que o fracasso só aconteceu porque ele quis, porque ele permitiu, porque "se eu tivesse me esforçado ou se eu realmente quisesse, não teria fracassado". O gênio preguiçoso, essa máscara patética, também deseja mostrar que não precisa progredir ou mudar a si mesmo, pois sente-se perfeito, pois pensa ser completo e estar patamares acima dos demais.

Ironicamente, cada sucesso do gênio preguiçoso é muito comemorado, e toda a vez que o sucesso aparece serve como reforço substancial para confirmar o que é apenas um "mito". O mais engraçado é que, no fundo, o gênio sabe que não passa de uma pessoa normal, que fracassa normalmente como outra qualquer e que não possui nenhum talento ou compreensão elevada sobre as coisas. Na verdade, o que essas pessoas perceberam foi que as coisas são mais FÁCEIS do que APARENTAM. Isso, sem dúvida, é a única vantagem que eles têm sobre os demais: não significa que para eles as coisas são mais fáceis, mas sabem que as coisas são fáceis por si só.

No final, esse mito é um escudo ou um refúgio para aquelas pessoas que exigem demais de si mesmas, pessoas que, muito provavelmente, foram duramente cobradas pela vida ou sobre as quais expectativas foram excessivamente depositadas. Essas pessoas ostentam um orgulho muito grande, orgulho que as impede de sustentarem seus próprios erros perante os demais, e perante a si mesmas. Tudo o que a elas faltam é um pouco menos de "auto-crítica".

O que quero concluir com este post é que o mito do "gênio preguiçoso" é apenas uma brincadeira. Não conheço gênio algum nesta vida que tenha sucesso sem uma medida de esforço. Conheço duas pessoas realmente acima da média, e o engraçado é que essas pessoas estudam e se esforçam pra caralho para manterem os resultados que conseguem: nada é construído na vagabundagem, por elas.

Também acho que, em parte, essa coisa de "gênio preguiçoso" é uma moda em nossa época: pessoas individualistas, que se pensam donas de muita atitude, temperamento difícil, problemáticas, mais inteligente que a média, reclusas, "difíceis" de se lidar, imorais... Isso tudo é uma grande besteira. A própria idéia de individualidade, de personalidade forte, morreu no momento em que, de uma maneira direta ou indireta, tu foi levado a pensar que para se constituir em tu mesmo precisa ser diferente dos demais (ou seja, para ser tu mesmo precisa não ser os outros, o que é uma atitude totalmente reativa).

Tenho acompanhado a formação de uma crítica-leitura da Temporada no Inferno, do Rimbaud, e que trata justamente do sentimento do Orgulho e de toda essa idéia de "genialidade" (coisa muito romântica) e da "vidência". Em algum momento, postarei aqui alguns trechos. É do Nykolas Friedrich, meu primo.

 

É isso.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Mudança

Hi ho! Estou mudando o blog para mahlerjugend.tumblr.com. Espero que seja do vosso agrado.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Regresso

Do ano passado ao início deste, por dez meses mais ou menos, empreendi uma estranha viagem à morte e de volta à vida.
É, receio, uma maneira demasiado dramática de se colocar a situação, mas houve um percurso acidentado e tortuoso até reequilibrar-me após a morte de meu pai, o que só posso afirmar ter acontecido mais de um ano depois. Mas este estado de coisas não se instaurou antes de se haver passado um mês, precisamente, daquela noite de fins de maio.
Minha reação, pela maior parte deste primeiro mês, foi das mais desconcertantes — mesmo para mim, pensando hoje. Foi uma completa placidez. Na verdade, mesmo então surpreendia-me por estar aceitando tão bem a perda.
Isto durou até a manhã do dia 28 de junho do ano passado. Durante a madrugada, tive um sonho: estávamos todos na casa da praia — todos: meu pai estava sentado na minha frente, nunca havia partido. Era como se tudo fosse um mero engano. Eu o abraçava, chorando. E então acordei, à força do despertador, lembrando-me vividamente do sonho, e pensei
Hoje é dia 28. Faz um mês.
Com estas duas frases, entrei em depressão. (Não tenho certeza de poder enquadrar minha condição neste termo; trata-se apenas da qualificação mais próxima que posso recordar.) Passou-se quase um ano em que não sabia muito bem o que fazer; se estava onde queria estar; se estava estudando o que realmente desejava; se havia feito, afinal de contas, alguma escolha correta. A repetição quase contínua destas perguntas em minha mente, que em certo ponto chegou a um nível brutal e raramente resultava em respostas positivas, além do longo tempo que me levou para enfim escrever isto, me impedem de fazer um relato mais detalhado. Lembro-me apenas de nunca ter chorado. Parece que perdi a capacidade de fazê-lo, embora fosse muito hábil nisto quando mais novo. Não vejo nisto, porém, qualquer sinal de força; penso, com efeito, que isto agravou a condição, como se perdesse a chance de voltar ao normal por uma salutar catarse.
Também não sei explicar — e isto é o que mais me intriga — por que, em algum dia do mês de março de dois mil e nove, saí deste quadro tão bruscamente como entrei e cheguei mais perto de uma aceitação: de algo que possa me atrever a chamar de serenidade. Fico, então, a imaginar se, nesta ignorância do motivo desta recuperação, não se esconde o perigo de voltar a estar como antes. Encontro-me otimista em relação à resposta; no pior dos casos, estarei um pouco mais preparado na próxima vez.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Um réquiem alemão.

Brahms é um de meus compositores favoritos, e Ein deutsches Requiem ("Um réquiem alemão"), baseado na tradução da Bíblia por Lutero, é uma de suas obras que mais me agradaram, embora seu conteúdo textual nunca me tenha provocado o mesmo impacto que o musical.
Mas foi justamente por seu texto que não me senti capaz de ouvi-lo por três meses.
Em fins de maio, havia um ou dois motivos que poderiam ter-me levado a escrever – o incontido prazer que a audição ao vivo da Fantasia para piano, coro e orquestra de Beethoven me provocara; a decepção com o último filme de Indiana Jones, já que sou fã da série; talvez mesmo alguma reminiscência do texto que havia completado não faziam dois meses e do qual coloquei no blog alguns excertos. Mas então me forcei a deixá-los de lado, porque se me haviam tornado irrelevantes. E esqueci.

Na tarde do dia 26 de maio, meu pai sofreu um derrame; veio a expirar dois dias depois. É-me embaraçoso dizer que só a partir deste momento percebi o quão alienadas eram algumas das minhas noções sobre a vida – e sobre a morte. Apesar de meu pai já ter considerável idade e dos cuidados que precisava tomar com sua saúde, nunca me pareceu que eu o fosse perder tão cedo. Sabia muito bem o quanto devia a meus pais e o quão bem eles me haviam criado, mas nunca havia percebido a extensão da parecença com ele que desenvolvi. Não me refiro aqui à semelhança física, que existe, mas não importa de fato; mas sim à das nossas personalidades – e, ainda assim, não encontro em mim algumas das qualidades que associei a ele. Jamais poderia me dizer tão resoluto, ou mesmo seguro quanto ele.

E, naquela noite de quarta-feira, lá estávamos nós, nossa família. Chorávamos, nos confortávamos. Eu não sabia o que estava acontecendo. Isto é tão... irreal. Passaram dois enfermeiros no corredor, com uma maca sobre rodas, com um lençol branco que encobria uma forma. Tão... tétrico. Então, por uma relação um pouco obscura, que não sei se não me deveria fazer envergonhar-me, surgiu-me à mente um som furioso, angustiado. É o corpo do meu pai.
Sabia que música era aquela: o clímax do Adagio da décima sinfonia de Mahler, ao qual o adjetivo se encaixava perfeitamente. Tétrico. Mas esta foi uma associação tão superficial que não tive problemas em encarar a música poucas semanas depois.
O mesmo não se deu com o Brahms. Meu pai não gostava muito de Brahms, nem mesmo de música clássica em geral. Creio que jamais ouviu Ein deutsches Requiem. De que maneira, então, minha audição da obra se relaciona com a perda dele?

Foi no enterro, numa quinta-feira fria, chuvosa. Passei a maior parte do dia no cemitério, ao lado do caixão. No fim da tarde, chegou o pastor. Revelou-se um formidável cretino, mas não me darei ao trabalho de discutir isso. Ao longo da encomenda, leu algumas linhas da Bíblia, até que chegou a quatro versículos dos Salmos:

Faze-me conhecer, Senhor, o meu fim, e a medida dos meus dias, qual é, para que eu sinta quanto sou frágil.
Eis que fizeste os meus dias como a palmos o tempo da minha vida é como nada diante de ti.
Na verdade, todo o homem, por mais firme que esteja, é totalmente vaidade. Na verdade, todo o homem anda como uma sombra, em vão se inquietam; amontoam riquezas, e não sabem quem as levará.
Agora, pois, Senhor, que espero eu? A minha esperança está em ti.

Reconheci-os de imediato. São as linhas que abrem o terceiro movimento do Deutsches Requiem.

Herr, lehre doch mich, daß ein Ende mit mir haben muß, und mein Leben ein Ziel hat, und ich davon muß.
Siehe, meine Tage sind einer Hand breit vor dir, und mein Leben ist wie nichts vor dir.
Ach, wie gar nichts sind alle Menschen, die doch so sicher leben. Sie gehen daher wie ein Schemen, und machen ihnen viel vergebliche Unruhe; sie sammeln und wissen nicht wer es kriegen wird.
Nun Herr, wess soll ich mich trösten? Ich hoffe auf dich.

Aprendera a amar estas linhas, cantadas magnificamente pelo barítono solista. Logo pensei na interpretação soberba de Dietrich Fischer-Dieskau. E não tive mais coragem de ouvir a peça, pelos três meses que se seguiram.
Sabia, no entanto, que não podia simplesmente evitar a música. Faz já um mês que voltei a ouvi-la. É muito diferente fazê-lo agora, ainda que o texto, mesmo com o significado que ganhou, não me comunique religiosamente o que penso que comunicaria a meu pai. Mas este é talvez o destino de cada humano: ser uma cópia imperfeita de seu pai.

domingo, 7 de setembro de 2008

Ao Lar

Sol - obscura dissonância
engoli-o
deixa seu rastro amarelecido
delicados e frios galhos de gelo
vidro quebra-se no andar de cima
noite atira uma tempestade laranja nas janelas do 12
órbitas oculares espiam segredos na avenida
colunas verticais dobra o envelhecimento
e algo como uma espinha dorsal salta da onda que vem da sala
uma onda de luz e de notícias trágicas do mundo moderno.

domingo, 8 de junho de 2008

Tem alguém aí?

Há algum tempo atrás, o novo e abençoadíssimo Papa Bento XVI, disse, não sei se em rede internacional, ou em alguma de suas inúmeras entrevistas, que a humanidade, e principalmente a juventude, adoecia de uma profunda "falta de perspectiva".
Que perspectiva é essa? E que falta é essa que, nas palavras do próprio Papa, parece constituir espécie de doença degenerativa, que aparenta assolar e corroer o espírito do homem contemporâneo?
Escrevi um texto honestamente influenciado, em matéria de escrita, pelo discurso poético do Nietzsche. Não sei se a tradução é perfeita ou não, mas desde o Zaratustra, que li há mais de dois anos, fui contaminado pela sua expressão inimitável, a qual, sem querer, tento imitar.
A matéria do discurso pode condizer ou não com a opinião de vocês, e isso, de fato, pouco me importa. Leiam e ponderem. Será que tagarelo como um louco, ou me faço o mais lúcido dos homens?
O texto teve, em base, algumas idéias estritamente nietzscheanas que se incorporaram ao meu pensamento.





"Hoje acordei bem cedo, porque quero contemplar bem o dia. Ele amanhece pelas seis e meia, e o sol é tão lindo, tão radiante! Sua cabeça dourada ri entre as nuvens, molestado pelo otimismo dos homens.

"Hoje acordo cedo, para sentir muito bem a brisa da manhã, fresca, esgotando nas folhas todo o orvalho da umidade. Nelas, respirarei os perfumes da natureza, e me agarrarei à vida ferrenho e balofo.

"Agradeço a Deus por cada dia que Ele me dá; em cada dia, ponho o meu espírito a contemplá-lo, e a saciar-me do Mundo, como se o esgotasse em um oásis, sedento de sede.

"O sorriso nos homens eu procuro, sempre com um sorriso largo e bem demonstrado. Quero que em meus dentes rebrilhe a dureza do sol, e o seu cântico, que é um hino à vida!

"Ando bem de mansinho, e curvo-me diante das asperezas. É preciso suportar a dor, e todo o tipo de adversidade com a humildade dos novilhos, se quer viver até velhinho. Ainda amarei cabelos prateados que crescem e emolduram o meu rosto, porque lá o sol ainda brilhara jocoso, e o meu riso escalará o vértice celeste.

"Curvo-me, bem o sei. Quereria não me curvar, não entregar-me assim, com essa ponta de ressentimento vão; ah, ressentimento. É um veneno sutil, uma dorzinha de cabeça que sempre sobrevém-me no sorriso, reforçando-o mais um pouco quando dele me imagino vitorioso.

"Agora pensando bem, secretamente, quando a noite puxa o seu véu estrelado e bonito (ah! Como o amo!), invade-me o desejo de fantasiar o triunfo, a glória, a valentia que os antigos helenos faziam troar nos ares belicosos! Ah! Se eu tivesse uma espada! Se fosse tão indiferente e 'assassino da vida'!

"Indiferença! Bah! Quem precisa dela? A vida é apenas uma. É uma dádiva que, humildemente, recebemos e apreciamos até o fim dos dias. Apreciamos, deleitamo-nos dela. Ela é tão linda! Tão radiante! A Morte... esta traz o esquecimento do Nada! O horrível abraço gélido do abismo. Nada podemos esperar da Morte que não absolutamente nada. A vida esvaziada de si. O horror da inconsciência. A vida, que vivo alegremente, no fundo é um constante direcionar de forças para o abismo.

"Queria ter asas! Asas de águia. Mergulharia nele, e voltaria do abismo, conhecendo-lhe as concavidades, o desenho que o tempo perpetua nas rochas. Ali, conheceria os segredos do penhasco, e poderia realizar o definitivo vôo da Fênix, tantas vezes...

"Mas não! Não podendo voltar dos mortos, e tendo Deus sido tão generoso com esta vida mortal, esta... esta... vida efêmera, passageira, mais leve que o rarefeito éter, mais leve que uma folha cadente no Outono,... devo consumir cada segundo, agarrado covardemente a ele, cada pequeno grão da areia do tempo, cada pequena fagulha da eternidade que, subitamente, ilumina a fauce do abismo, e se cala no infinito. Ah, sim! Viver... viver cada segundo, como se a morte de cada pequena centelha no vento da Eternidade, fosse um suplício, um erro! Erro! Suplício!

"Suplico pela maçã que foi mordida! Pelo pecado maior que carrego no ombro, fardo do meu sangue de Adão.

"Cada segundo, agarrado com a voracidade de verdadeiro lobo, é um triunfo que tenho sobre a vontade divina e inflexível?

"Cada revolução solar é um novo começo, o qual engulo, o qual devoro, com minhas presas famintas. Quero o sangue da Terra e do Céu vertendo entre meus dentes!

"Esvaziar os frutos da Árvore da Vida. Que seja o preço meu orgulho, minha dignidade, que importa! A vida é bela! As músicas nos comovem. Somos eternos bichinhos comovidos pelo instante.

"A fugacidade do instante inebria-me. Estou bêbado, dançando sobre minha sepultura como um macaco, e, no entanto, sem saber, entoando o verdadeiro hino da Morte!

"Mergulhar em cada momento, esquecendo-me de ser Homem. Sou bicho, extasiado numa canção que não é minha. Amedrontado pela aniquilação voluptuosa dos prazeres. O Futuro é uma sombra distante frente à claridade do meu sonambulismo!"

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Hronos ou Kronos.

Estranhos pensamentos assaltaram-me. Esses dias pensei que, o mais feliz dos homens também pode ser o mais solitário. E por quê? Há felicidade para fora do mundo? Quando me veio a palavra "mundo", inevitavelmente a associei de "pessoas". O mundo é uma natureza morta enquanto ausente de vida humana. Hoje em dia nunca estivemos tão solitários, e nunca também tão infelizes. Em nosso desespero por identidade, elevamos estranhas muralhas de papel ao redor de nossos corações (sempre, à força de luz, se dá para entrever o mundo lá fora). Hoje, quando escrevo dois poemas sobre um possível sentido da vida, dei-me conta de toda a extensão da infelicidade humana, mas também, de todo o caminho em direção a seu oposto, que apesar de longo, é praticável.Trata-se, exatamente, de uma desvinculação com todos os preceitos morais de respeito à vida e de tentativa de transcendência pela vida a um estado de não-vida. Fui obscuro? Pegarei meu poema (só um instante):


Olhar para o céu, e não ver o Paraíso /
Não ver o rosto de Deus murmurando na grande fonte cristalina/
Nem no espelho negro das estrelas o cântigo dos anjos/
Solidão é um signo, como o do árabe errante/
Que sempre estará nos olhos do bem-aventurado/
Porque a sua felicidade, ainda que não exclua o mundo,
O exclui na multidão sombria de infelizes.
Há de ser o mais poderoso dos homens o solitário/
O homem que renegou o céu e o inferno/
Que descobriu a verdadeira metafísica no brilho das estrelas/
No murmurar da água que se agita na fonte divina/
Nos signos da solidão, que marcam os olhos do viajante.
Ele descobriu, de jeito ou outro, que a estrela é a estrela,
a água se agita, porque é a água, e o árabe viaja porque tem sede
de beber as águas da fonte da vida. Não existe metafísica na luz.
Ela é simplesmente o que é.
Como disse Caeiro, aquele que foi gerado pela natureza
que via na folha apenas a folha, e toda a vibrante vida
que emanava das coisas tais como são.
E não encontrar sentido em nada. E não pensar sobre transcendência.
Aceita a vida em seu absurdo injustificável/
Porque a vida, sendo tão bela e feita de tão plástica beleza,
Há de se justificar nela mesma. Tal é fresca a fonte murmurejante,
Tal é iluminado e belo o panorama do céu/
E bela a melodia dos anjos e das viagens.
Ele é o menino que está imerso e pleno de amor-próprio/
É quem tão intimamente entra em comunhão com o mundo/
Que lhe seria impossível negar que o que vê não é o mundo/

E o que sente não é o amor pleno.

Não se trata, exatamente, de negar o "bem" inoculando-se com os venenos do mal. É a regressão a um estado primitivo onde se passa a aceitar a vida como uma linearidade de acontecimentos completamente sem-sentido. Não há remissão possível. A morte é um único abismo por onde as almas migram, carregadas de consciência em estado puro, e é lá que se esquecem para sempre. Essa aceitação, inicialmente relutante, seria acompanhada por uma naturalidade bastante familiar do instinto. Destruir toda a possibilidade de salvação conduzirá à salvação da vida através dela mesma. Como isso acontece?No momento em que a vida se torna absurda, há a tendência do homem racional temer a morte ferrenhamente, e apegar-se a cada instante com todas as suas forças. Ainda não é o amor à vida, porque se depende dela. No estado inicial, a moral religiosa coloca o homem em débito com o além-mundo. No estado intermediário, com o Tempo. O último estado deverá colocar o homem em débito consigo mesmo.E que débito é este? É aquilo que defino, vagamente, como a noção de responsabilidade do homem por sua própria liberdade. É o posicionamento que definirá o caráter do homem perante a vida e o mundo. Se ele está em débito com Deus, inevitavelmente culpará seu destino. E se se está em débito com o tempo, culpará o outro por suas irrealizações. Se se está em débito consigo mesmo, só há a possibilidade de crescimento e de amadurecimento, no instante em que o homem se torna dono da própria vontade e responsável pela própria liberdade. Ele não é dependente do mundo, nem do amor, nem da vida. Vive-a numa voluntariedade apaixonante, uma vez que é independente ao ponto de sustentar-se emocionalmente por si próprio. Num estado primeiro, é o mais solitário dos homens, desvinculado de qualquer possível felicidade que dependa de segundos. Após, descobre o que é o verdadeiro amor, porque este só encontra substância sólida em si mesmo, através de uma vivência incondicional e desvinculada, livre, eruptiva. Para o mais feliz dos homens, todos os valores são aéreos de necessidade e conforto. O mais feliz dos homens conhece a plenitude do amor, que é jovem e ingênua: não há motivos para amar que não o próprio amor. Não existe prazer, nem no mundo e nem na vida, que não seja a própria vida e o próprio mundo. A fonte divina é a fonte, a água é a água, a rosa é a rosa, o céu é o céu, e essa "morte do símbolo" transcendental eleva o homem ao estado de "Divina Criança": o mais feliz dos homens concebe o mundo como fosse uma novidade eterna, e que abarca em sua totalidade pura e incorruptível. Seu coração é um cálice transbordante de prazeres: em toda a beleza efêmera ele semeia deuses, tornando infinito e eterno o regozijo. E a cada revolução das estrelas percebe a inocência do menino se renovando nas feições da natureza. Sua selvageria não admite o rugido surdo de canhões, a violência do fogo da opressão: para ele as leis da vida ignoram o egoísmo dos homens, e é capaz de defender a própria vida com o preço de perdê-la. E a cada anoitecer em sua alma, acende mil estrelas que dardejam no infinito: não existe escuridão que não se ilumine da beleza dos seus olhos inocentes e senhoris. E ele despreza os túmulos e o lamento do Macaco, porque a morte se lhe afigura distante e indiferente, tão amante da vida é e tão presente nela se faz: se faz presente sem aferrar-se covardemente. O mais feliz dos homens se farta dos presentes do Mundo, mas não como se fosse o último dia de sua vida. O mais feliz dos homens se farta das dádivas da Terra como se o dia de sua vida fosse o primeiro.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Morféia: Ou alucinação epidêmica.

"Está um belo câncro no céu: amarelo, meio avermelhado dos lados, obscurecido onde o sangue coagula e se transfigura em casquinhas nojentas."

Vocês certamente devem estar pensando que perdi a razão, mas na verdade a tive iluminada.

Agora mesmo, logo após de acordar e falar com o Buck, tive uma idéia interessante de escrevermos uma peça onde toda a convenção vocabular é substituída por doenças, procedimentos médicos, e coisas nojentas. Provavelmente as personagens bebem linfomas, comem câncer no jantar e hepatite B de sobremesa. É genial. Imagino que a peça se tratasse de algo irônico e absurdo, como um bando de doutores tentando curar um paciente que está... absolutamente saudável!

Hoje posto depois de muito tempo. A última vez que quase o fiz, pela semana passada ou retrasada, quase postei algum texto do Nietzsche. Não o fiz. Pareceu-me despropositado.

Buck vai enlouquecer. Esses dias encontrei na UFRGS uma revista chamada "Pli Selon Pli". Não sei se era uma revista, ou uma matéria onde associava Mallarmè à peça musical daquele velhinho frígido. Associava, não. Perdão. Aproximava, como se já não fossem próximas o suficiente. Ainda não a li, e ela está toda em francês. Por um lado isso me desanima. Por outro: porque diabos entrei no Francês?

Observação do Buck: 'o nosso é o melhor blog que ninguém nunca comenta'. Ou algo assim. Era algo próximo disso.

Enfim... e o Torquato? Onde está aquele ítalo-germano cretino? Ele entrou no nosso blog, e até agora não postou nada! Vou reclamar com o Anchieta.

sábado, 17 de maio de 2008

Excerto

Infelizmente, o Kinch está num estado semi-comatoso, então não é desta vez que verão novo texto dele. Para preencher essa lastimável lacuna, trago um trecho de um texto que posso chamar de minha única obra completa, um misto de diário e ficção cujo atual título é... "Ceci n'est pas un titre". (Oi, Magritte.) ...Nah, na verdade é apenas o nome do arquivo do Word.


(4/1/2008)

Exibiram, há pouco, num programa evangélico da TV Universal do Reino de Deus, uma reportagem cuja chamada consistia da seguinte pergunta: o que faz os jovens buscarem o sexo desenfreado – o livre acesso a ele ou a desestruturação familiar? Jovens. Adolescentes. Toda vez que uma dessas duas palavras aparece na televisão, aposte all in: lá vem merda. Quando ouço a palavra adolescente, eu destravo a minha Browning. Mas seria estúpido atirar no televisor, então passei uns minutos vendo a reportagem e queimando fosfato. Os repórteres começaram por entrevistar uns indivíduos em alguma festa de fim-de-ano, creio que em São Paulo: indagavam-lhes o que eles faziam ali e recebiam, invariavelmente, como resposta, Namorar, Conhecer gente bonita, und so weiter. (Eu ia me limitar a dizer que as respostas envolviam o gênero oposto, mas acho que, em um momento em que prestei pouca atenção, uma rapariga disse, Gatinhas.) As respostas eram intercaladas com imagens de casais de jovens (controla essa comichão no indicador, Dirty Harry, foi você mesmo que usou a palavra desta vez) se beijando, und so weiter, und so weiter. Estou certo de que fazer essa reportagem demandou uma insensibilidade e um enviesamento de fazer parecerem modestos os atributos dos adolescentes (ah, não te provoca...) mais estúpidos. In(?)felizmente, não vi o fim da matéria, mas não acho arriscado supor que a resposta ao problema da Geração Desejo, como os Repórteres Universais do Reino de Deus apelidaram os (não escreve a palavra, a não ser que esteja pronto para aposentar a Browning e partir para uma Automag) desta época, tem o tom de moraldahistória veementemente religiosa pelo qual os evangélicos têm predileção; se essa conclusão não viesse dos repórteres, seria inevitavelmente, proferida pelo pastor que apresenta o programa. O primeira ato de estupidez está em alardear que a religião é fundamental para evitar o livre acesso ao sexo pelos (ugh!) e, especialmente, para manter a unidade familiar – o que na verdade implica o controle do acesso ao sexo, já que este é (tem de ser) exercido pelos pais dos (ai!). (Exceto, claro, se Josef Djugashvili voltasse do mundo dos mortos no Musikverein enquanto Boulez rege a segunda de Mahler.) Não preciso olhar para quaisquer outras bandas para achar um exemplo que fale em contrário deste argumento. Meus pais não são particularmente religiosos (não são sequer da mesma igreja, mas Falls Road não passa aqui por casa), e eu sou ateu. Mesmo sem a influência determinante de qualquer religião, a família não se encontra desagregada. E não estou metendo qualquer membro em qualquer lugar. Poder-se-ia replicar que o argumento não se aplica a todos os (aaai, meudeusinexistente!), mas essa sutileza faltou à equipe do programa: todos os entrevistados que apareceram responderam no mesmo tom; se alguém que respondeu que estava lá por simples diversão, mesmo que em insignificante minoria, foi deixado de fora pela edição; o texto da chamada dizia, Os (ah, minha pressão!). Artigo definido: generalização. Ademais, o termo desestruturação familiar guarda uma característica interessante: mesmo quando usado em abundância (em demasia), seu sentido exato é raramente definido. No entanto, pode-se entender que, da maneira como a expressão é usada, implique o divórcio dos pais e a conseqüente perda de sua autoridade frente aos filhos. Um religioso que se opõe ao divórcio – parece novidade. Mas aí reside o Ato Adicional de estupidez: outra generalização grosseira, a de que o divórcio é, invariável e inevitavelmente, um vórtice que leva os membros da família ao desequilíbrio emocional e, finalmente, social. O responsável por isso é o mau manejo da situação, naqueles casos que são menos separação do que rixa entre os nãomaiscônjuges; se me estendi em criticar os (nitroglicerina!), não disse em momento algum que os adultos são sempre razoáveis – muitos, lamentavelmente, nunca deixam de ser (...há um médico na casa?). Por fim, achei interessante a expressão sexo desenfreado. A mim, soou bastante, como dizer, católica. E, se alguém desejar me lembrar (como se eu o ignorasse) do direito à livre expressão que mesmo os imbecis têm: para mim, esse direito toma uma forma mais sagrada (sic), da qual não hei de abrir mão, que é o direito de chamar de idiotas os idiotas e de mandá-los enfiar sua idiotice no rabo. (Mas isto não os tornaria, além de idiotas, imodestos? Jacopo...?)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Hábito

Tenho como costume "tocar" música na mente enquanto caminho. É um velho hábito de quem não tem mp3-, mp4-, ou mp(númerodeavogadro)-player, quer matar o tempo enquanto se desloca dum lugar a outro e não teria o que fazer com o cérebro no percurso otherwise, mas traz o benefício de poder construir uma interpretação própria sobre a música. Só que isto acabou me levando a adquirir outro costume, o de "reger" a música quando me distraio um tantinho além da conta; não com os braços erguidos à frente do corpo, como qualquer maestro competente, mas movendo-os entre a vertical e um ângulo não muito grande em relação a esta; isto é, basicamente apontando-os para o chão, como o faria se apenas caminhasse, mas em compasso com a música e não com as pernas. (Os movimentos mais amplos e expressivos eu guardo para quando ouço música sozinho, em casa.)
Ao que parece, a maioria das pessoas não repara nisto, ou ao menos não reconhece do que se trata, mas, numa noite da semana passada, na volta da faculdade, quando aproveitei o tempo ocioso para "interpretar" mentalmente o primeiro movimento da quarta de Brahms, com a movimentação que descrevi, um sujeito passou por mim e perguntou, Ópera?
Minha primeira reação foi pensar, Não mesmo, porque Brahms não compôs óperas, e rir, mas não tardei a perceber que estava fazendo algo de estranho e potencialmente embaraçoso. Mas ei, sou eu.