Estranhos pensamentos assaltaram-me. Esses dias pensei que, o mais feliz dos homens também pode ser o mais solitário. E por quê? Há felicidade para fora do mundo? Quando me veio a palavra "mundo", inevitavelmente a associei de "pessoas". O mundo é uma natureza morta enquanto ausente de vida humana. Hoje em dia nunca estivemos tão solitários, e nunca também tão infelizes. Em nosso desespero por identidade, elevamos estranhas muralhas de papel ao redor de nossos corações (sempre, à força de luz, se dá para entrever o mundo lá fora). Hoje, quando escrevo dois poemas sobre um possível sentido da vida, dei-me conta de toda a extensão da infelicidade humana, mas também, de todo o caminho em direção a seu oposto, que apesar de longo, é praticável.Trata-se, exatamente, de uma desvinculação com todos os preceitos morais de respeito à vida e de tentativa de transcendência pela vida a um estado de não-vida. Fui obscuro? Pegarei meu poema (só um instante):
Olhar para o céu, e não ver o Paraíso /
Não ver o rosto de Deus murmurando na grande fonte cristalina/
Nem no espelho negro das estrelas o cântigo dos anjos/
Solidão é um signo, como o do árabe errante/
Que sempre estará nos olhos do bem-aventurado/
Porque a sua felicidade, ainda que não exclua o mundo,
O exclui na multidão sombria de infelizes.
Há de ser o mais poderoso dos homens o solitário/
O homem que renegou o céu e o inferno/
Que descobriu a verdadeira metafísica no brilho das estrelas/
No murmurar da água que se agita na fonte divina/
Nos signos da solidão, que marcam os olhos do viajante.
Ele descobriu, de jeito ou outro, que a estrela é a estrela,
a água se agita, porque é a água, e o árabe viaja porque tem sede
de beber as águas da fonte da vida. Não existe metafísica na luz.
Ela é simplesmente o que é.
Como disse Caeiro, aquele que foi gerado pela natureza
que via na folha apenas a folha, e toda a vibrante vida
que emanava das coisas tais como são.
E não encontrar sentido em nada. E não pensar sobre transcendência.
Aceita a vida em seu absurdo injustificável/
Porque a vida, sendo tão bela e feita de tão plástica beleza,
Há de se justificar nela mesma. Tal é fresca a fonte murmurejante,
Tal é iluminado e belo o panorama do céu/
E bela a melodia dos anjos e das viagens.
Ele é o menino que está imerso e pleno de amor-próprio/
É quem tão intimamente entra em comunhão com o mundo/
Que lhe seria impossível negar que o que vê não é o mundo/
E o que sente não é o amor pleno.
Não se trata, exatamente, de negar o "bem" inoculando-se com os venenos do mal. É a regressão a um estado primitivo onde se passa a aceitar a vida como uma linearidade de acontecimentos completamente sem-sentido. Não há remissão possível. A morte é um único abismo por onde as almas migram, carregadas de consciência em estado puro, e é lá que se esquecem para sempre. Essa aceitação, inicialmente relutante, seria acompanhada por uma naturalidade bastante familiar do instinto. Destruir toda a possibilidade de salvação conduzirá à salvação da vida através dela mesma. Como isso acontece?No momento em que a vida se torna absurda, há a tendência do homem racional temer a morte ferrenhamente, e apegar-se a cada instante com todas as suas forças. Ainda não é o amor à vida, porque se depende dela. No estado inicial, a moral religiosa coloca o homem em débito com o além-mundo. No estado intermediário, com o Tempo. O último estado deverá colocar o homem em débito consigo mesmo.E que débito é este? É aquilo que defino, vagamente, como a noção de responsabilidade do homem por sua própria liberdade. É o posicionamento que definirá o caráter do homem perante a vida e o mundo. Se ele está em débito com Deus, inevitavelmente culpará seu destino. E se se está em débito com o tempo, culpará o outro por suas irrealizações. Se se está em débito consigo mesmo, só há a possibilidade de crescimento e de amadurecimento, no instante em que o homem se torna dono da própria vontade e responsável pela própria liberdade. Ele não é dependente do mundo, nem do amor, nem da vida. Vive-a numa voluntariedade apaixonante, uma vez que é independente ao ponto de sustentar-se emocionalmente por si próprio. Num estado primeiro, é o mais solitário dos homens, desvinculado de qualquer possível felicidade que dependa de segundos. Após, descobre o que é o verdadeiro amor, porque este só encontra substância sólida em si mesmo, através de uma vivência incondicional e desvinculada, livre, eruptiva. Para o mais feliz dos homens, todos os valores são aéreos de necessidade e conforto. O mais feliz dos homens conhece a plenitude do amor, que é jovem e ingênua: não há motivos para amar que não o próprio amor. Não existe prazer, nem no mundo e nem na vida, que não seja a própria vida e o próprio mundo. A fonte divina é a fonte, a água é a água, a rosa é a rosa, o céu é o céu, e essa "morte do símbolo" transcendental eleva o homem ao estado de "Divina Criança": o mais feliz dos homens concebe o mundo como fosse uma novidade eterna, e que abarca em sua totalidade pura e incorruptível. Seu coração é um cálice transbordante de prazeres: em toda a beleza efêmera ele semeia deuses, tornando infinito e eterno o regozijo. E a cada revolução das estrelas percebe a inocência do menino se renovando nas feições da natureza. Sua selvageria não admite o rugido surdo de canhões, a violência do fogo da opressão: para ele as leis da vida ignoram o egoísmo dos homens, e é capaz de defender a própria vida com o preço de perdê-la. E a cada anoitecer em sua alma, acende mil estrelas que dardejam no infinito: não existe escuridão que não se ilumine da beleza dos seus olhos inocentes e senhoris. E ele despreza os túmulos e o lamento do Macaco, porque a morte se lhe afigura distante e indiferente, tão amante da vida é e tão presente nela se faz: se faz presente sem aferrar-se covardemente. O mais feliz dos homens se farta dos presentes do Mundo, mas não como se fosse o último dia de sua vida. O mais feliz dos homens se farta das dádivas da Terra como se o dia de sua vida fosse o primeiro.
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Um comentário:
Admito que essas duas últimas postagens foram BEM influenciadas em conversas e "debates filosóficos" que tive com o meu primo. Falar de Nietzsche é um passatempo. Só tomara que ele não esteja se revirando no túmulo com meus delírios.
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