domingo, 20 de abril de 2008

Festim de Palavras, ato I

Excerto do primeiro ato de uma peça iniciada por Kinch e por mim em 2005, ainda inacabada. O abade Müller encomenda uma casimira ao vendedor de tecidos, Weinstein, que será buscada pelo padre Garcin. Estes dois serão as figuras centrais do segundo ato (do qual logo postarei um excerto).

(Entra o rapazinho Friedrich, tendo segura sob o braço uma tabuleta onde lê-se, simplesmente: aplausos.)

Friedrich (jocoso): Não se morre no meio do quinto ato. (Deposita a tabuleta ao pé do balcão.)

O abade (novamente distraído, tendo perdido os olhos em meio a duas saias) Oh... sim... (volta-se, num rompante de pânico) Onde?! (Olha Friedrich, fitando-o intrigado, logo dando-se conta e fazendo um sinaldacruz) Eu preciso ir: rosna-me a fome. Estejais com Deus... (Eleva a voz sutilmente) ambos!

O estômago abacial (enérgico, rosna): Salame!

O dono do estômago (subjugado): Qual?

O estômago: Hamburguês!

O dono: Regado a um bom vinho... Ótima sugestão!

O estômago: Não! Cerveja!

O dono (contrariado): Prefiro vinho...

O estômago (imperativo): Cerveja! À taverna!

O dono (resignado): Ao senhor Jakob Hitler, então. (Faz outro sinaldacruz ao judeu e ao menino e sai no mesmo instante em que o leiteiro está a entrar. Os dois ficam entalados por alguns instantes, até que o maior vigor do leiteiro prevalece, empurrando o abade de volta para dentro. O abade finalmente deixa o lugar.)

Friedrich (com o pé, deita a tabuleta): Papai está alterado. Ele não é movido a álcool, o senhor sabe, não senhor Weinstein?

Weinstein (rememorando): Sim. Aquela festa da colheita, quinze anos atrás... Não bebo mais de uma caneca desde então. Índices alcoólicos elevados prejudicam a direção.

Leiteiro: De fato! De fato... leite é o novo carvão dos corações taverneiros, arruaceiros, bandoleiros... (voz gradativamente mais baixa) Bom, senhores; em respeito sublime, astral, magnânimo (voz enfática) que devoto à auréola abacial, ainda não espalhei de meu ar! Mas fiquem tranqüilos que o leite ainda não virou coalhada! (Com jovialidade pura, estende uma garrafinha de leite ao jovem Friedrich) É de boa safra! (Ele abre a garrafa e bebe um gole. Então, estende a garrafa a Friedrich) Tomou?

Friedrich (seco): Essa empresa acabará por falir, senhor Brahms.

Weinstein (distraído): Cacau adicionado ao leite fica delicioso.

Brahms (confuso): Obrigado pela sugestão, senhor Weinstein. (O músicoleiteiro sai.)

(Ouve-se a voz de Brahms do lado de fora.)

Brahms (a outra senhora idosa): Leite fresco!

A senhora Kohl (jovial): Não, obrigada.

Brahms (à outra senhora que acompanha a primeira): Leite? (Os três aparecem através da porta.)

A outra senhora (de forma rabugenta): Não! Não quero seu leite, suas sinfonias, seus concertos! Chega dessa insistência!

Brahms (sarcástico): Eu só venderia o leite à senhora. Minhas sinfonias e meus concertos, vendo-os a Viena.

(A primeira senhora disfarça um sorriso.)

A primeira senhora: Adeus, senhor Brahms!

Brahms: Adeus, senhoras Kohl!

(As irmãs Kohl se vão.)

Nenhum comentário: