Mas foi justamente por seu texto que não me senti capaz de ouvi-lo por três meses.
Em fins de maio, havia um ou dois motivos que poderiam ter-me levado a escrever – o incontido prazer que a audição ao vivo da Fantasia para piano, coro e orquestra de Beethoven me provocara; a decepção com o último filme de Indiana Jones, já que sou fã da série; talvez mesmo alguma reminiscência do texto que havia completado não faziam dois meses e do qual coloquei no blog alguns excertos. Mas então me forcei a deixá-los de lado, porque se me haviam tornado irrelevantes. E esqueci.
Na tarde do dia 26 de maio, meu pai sofreu um derrame; veio a expirar dois dias depois. É-me embaraçoso dizer que só a partir deste momento percebi o quão alienadas eram algumas das minhas noções sobre a vida – e sobre a morte. Apesar de meu pai já ter considerável idade e dos cuidados que precisava tomar com sua saúde, nunca me pareceu que eu o fosse perder tão cedo. Sabia muito bem o quanto devia a meus pais e o quão bem eles me haviam criado, mas nunca havia percebido a extensão da parecença com ele que desenvolvi. Não me refiro aqui à semelhança física, que existe, mas não importa de fato; mas sim à das nossas personalidades – e, ainda assim, não encontro em mim algumas das qualidades que associei a ele. Jamais poderia me dizer tão resoluto, ou mesmo seguro quanto ele.
E, naquela noite de quarta-feira, lá estávamos nós, nossa família. Chorávamos, nos confortávamos. Eu não sabia o que estava acontecendo. Isto é tão... irreal. Passaram dois enfermeiros no corredor, com uma maca sobre rodas, com um lençol branco que encobria uma forma. Tão... tétrico. Então, por uma relação um pouco obscura, que não sei se não me deveria fazer envergonhar-me, surgiu-me à mente um som furioso, angustiado. É o corpo do meu pai.
Sabia que música era aquela: o clímax do Adagio da décima sinfonia de Mahler, ao qual o adjetivo se encaixava perfeitamente. Tétrico. Mas esta foi uma associação tão superficial que não tive problemas em encarar a música poucas semanas depois.
O mesmo não se deu com o Brahms. Meu pai não gostava muito de Brahms, nem mesmo de música clássica em geral. Creio que jamais ouviu Ein deutsches Requiem. De que maneira, então, minha audição da obra se relaciona com a perda dele?
Foi no enterro, numa quinta-feira fria, chuvosa. Passei a maior parte do dia no cemitério, ao lado do caixão. No fim da tarde, chegou o pastor. Revelou-se um formidável cretino, mas não me darei ao trabalho de discutir isso. Ao longo da encomenda, leu algumas linhas da Bíblia, até que chegou a quatro versículos dos Salmos:
Faze-me conhecer, Senhor, o meu fim, e a medida dos meus dias, qual é, para que eu sinta quanto sou frágil.
Eis que fizeste os meus dias como a palmos o tempo da minha vida é como nada diante de ti.
Na verdade, todo o homem, por mais firme que esteja, é totalmente vaidade. Na verdade, todo o homem anda como uma sombra, em vão se inquietam; amontoam riquezas, e não sabem quem as levará.
Agora, pois, Senhor, que espero eu? A minha esperança está em ti.
Reconheci-os de imediato. São as linhas que abrem o terceiro movimento do Deutsches Requiem.
Herr, lehre doch mich, daß ein Ende mit mir haben muß, und mein Leben ein Ziel hat, und ich davon muß.
Siehe, meine Tage sind einer Hand breit vor dir, und mein Leben ist wie nichts vor dir.
Ach, wie gar nichts sind alle Menschen, die doch so sicher leben. Sie gehen daher wie ein Schemen, und machen ihnen viel vergebliche Unruhe; sie sammeln und wissen nicht wer es kriegen wird.
Nun Herr, wess soll ich mich trösten? Ich hoffe auf dich.
Aprendera a amar estas linhas, cantadas magnificamente pelo barítono solista. Logo pensei na interpretação soberba de Dietrich Fischer-Dieskau. E não tive mais coragem de ouvir a peça, pelos três meses que se seguiram.
Sabia, no entanto, que não podia simplesmente evitar a música. Faz já um mês que voltei a ouvi-la. É muito diferente fazê-lo agora, ainda que o texto, mesmo com o significado que ganhou, não me comunique religiosamente o que penso que comunicaria a meu pai. Mas este é talvez o destino de cada humano: ser uma cópia imperfeita de seu pai.